E se o mundo se resumisse à nossa vida virtual, às redes sociais, aos likes, às trends, aos influencers, às danças da moda e aos seguidores? E se fôssemos tão mais felizes quantos mais pessoas tivéssemos a seguir o nosso perfil e quantos mais likes somássemos nas nossas publicações (cada vez mais arrojadas)? "Donate.llo, o rapaz que vive no futuro!", espetáculo multidisciplinar, apresentado a 8 de dezembro, na Casa da Cultura mostra essa realidade ficcionada, em que cada vez mais jovens vivem. Escancara as portas dos quartos fechados onde os pais não entram e onde uma geração ligada em rede e à rede vive num mundo paralelo, de forma cada ve mais obsessiva. Provocatório e reflectivo, este espetáculo da Associação Lugar Comum, desenvolvido no âmbito do projeto artístico 'Born to fail', resulta de um processo criativo partilhado, que envolveu jovens performers dos 14 e os 19 anos, com intérpretes mais velhos, como o músico João Gamory, e os nossos bem conhecidos Artur Guimarães e Catarina Alves... tudo isto sob 'batuta' do encenador Rafael Barreto. Na conceção desta performance, que reúne teatro, música e dança, os jovens do projeto Born to Fail - numa faixa etária altamente permeável à influência das redes sociais – juntaram-se a um segmento de intérpretes mais velhos, com pouca ou nenhuma presença nas redes sociais. Desta amálgama de experiências resultou a criação desta história sobre o influencer 'Donate.llo', um "orador motivacional", que, aos olhos dos outros, sabe sempre o que dizer e como dizer. "Nunca falha, pois vive num mundo perfeito e iluminado por uma ring light". Quando este 'deus' virtual lança o #DesafioDonate.llo, os seguidores crescem em flecha, tentando superar provas cada vez mais difíceis, tendo em vista o ansiado prémio de, também eles, obterem cada vez mais seguidores para os seus perfis das redes sociais.Donate.llo - que até fala com sotaque e expressões do português do Brasil, origem de alguns famosos influencers do youtube - conduz um batalhão de seguidores através de provas de superação cada vez mais difíceis e arriscadas. Para que os jovens da plateia revissem, em palco, alguns dos seus comportamentos e hábitos, a apresentação assumiu um tom imersivo. Logo à entrada, os espetadores foram convidados a ler um qr code, com os telemóveis, que os conduziu pelos desafios propostos por 'Donate.llo" e possibilitou a comunicação com a equipa criativa. Neste mundo iluminado à ténue luz do telemóvel até o guarda-roupa foi assumindo gradualmente a transparência, a superficialidade das relações conectadas em rede, de emoções induzidas por cliques. Mas, afinal, Donate.llo não passava de um jovem na solidão do seu quarto, a viver também ele num mundo de aparências, alimentando relações e interações de fantasia. Donate.llo não era do futuro, vivia mesmo aqui ao lado... O poder que assumiu através das redes servia não só para escudar a sua frustração, mas também para a projetar nos outros, com requintes de crueldade e perversão. Graças aos seus desafios morreram centenas de jovens em todo o mundo. Outros ficaram alheados da realidade.. Num alerta bem claro para esta realidade virtual cada vez mais presente, os intérpretes saíram de cena, interagiram e trocaram impressões com uma plateia reservada, que veio a demonstrar uma atitude oposta ao revelado na descontraída interação virtual propiciada durante o espetáculo. Esta escassez comunicativa, influenciada, entre outros fatores, pela ligação excessiva a aparelhos eletrónicos, bem como a urgente necessidade de uma maior e, sobretudo, de uma melhor,comunicação, foram salientados pelo encenador Rafael Barreto, que chamou a atenção para nunca perdermos o foco nas relações e interações reais. De um mundo de possibilidades e um universo de superficialidades onde o bullying e a pressão de grupo assumem dimensões inimagináveis, a tecnologia e o uso que dela fazemos devem ser repensados, refletidos e debatidos. E este foi, talvez, o mais importante objetivo desta apresentação/ experiência propiciada no XIV Festival de Música e Artes do Dão. O FMAD regressa já a 22 de dezembro, com o espetáculo 'Siga o Rapaz do Tambor'.
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