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“A Memória das Coisas” revela a magia secreta dos objetos

A sensação foi a de entrar numa velha loja, daquelas que guardam tudo, desde as tinas do azeite às molas de colchões barulhentos, aos skates que já não usamos, aos baloiços (aqueles de metal, sabem?) que nunca mais foram pendurados em árvores, até aos cadernos de escola com todas as linhas preenchidas, não só de notas, mas também de desabafos, de sentimentos, de desenhos/desejos, de sonhos. Uma fina camada de pó cristalizou – qual lençol branco a cobrir velhos móveis – estas peças da nossa existência, feitas de memórias pessoais, familiares, de gerações.


Nos dias 7, 8 e 9 de julho, à entrada da Casa da Cultura, o convite foi para descobrir objetos da memória e nos deixarmos conduzir pelo corredor do tempo. No auditório, as próprias paredes “forradas” a papéis escritos adensaram o ambiente imersivo propiciado desde o primeiro momento.

Nesta viagem sensorial, pautada pela inclusão, foi, ainda, disponibilizado um programa em braile e outros materiais adaptados, que mostraram que as memórias são percecionadas de forma diferente, consoante os sentidos que mais usamos para nos relacionarmos com o mundo.


Frases projetadas na parede funcionaram como âncoras e lembretes de toda a experiência vivida n’ “A Memória das Coisas” - espetáculo multidisciplinar, marcante e emotivo, que encerrou o ano letivo 2022/2023 do curso de teatro musical do Conservatório de Música e Artes do Dão (CMAD).


A palco, mais de oito dezenas de alunos trouxeram as suas próprias memórias, partilhadas em aula, e trabalhadas com a autora do texto, Ana Lázaro. Memórias que se foram juntando a outras histórias, num espetáculo feito de camadas e subtilezas, que nos recordou que “as coisas mágicas estão sempre disfarçadas de coisas comuns”.


Em cena, João, um afamado sous chef, reflete sobre as memórias da sua existência, que lhe surgem de forma confusa e pouco clara. Recordações de toda uma vida, preenchida e rica, que a personagem tenta a todo o custo agarrar, fixar e reviver. Porém a memória é esquiva e fluida, um lugar estranho e secreto, por vezes angustiante, mas tantas vezes reconfortante.


Ao João, o tão desejado (re)encontro com a memória acontece através de objetos, encontrados nas profundezas de um armazém de ferro velho, repleto de coisas desirmanadas e amontoadas. Um urso de peluche, um livro e até um bule partido guardam recordações de momentos marcantes de várias etapas no percurso de vida deste afamado cozinheiro.


Uma a uma, as memórias nucleares do sous chef são trazidas pelos nossos jovens atores que emergem de um fosso, como se viessem dos mais recônditos locais da mente do João. Memórias do primeiro dente, memórias do melhor amigo que lhe oferece um livro que o marca, memórias tristes dos pais ausentes, de solidão e angústia, mas também recordações felizes de momentos em família e da vivência com os irmãos, até um momento de paixão numa “quente noite de verão”.


Nesta história cíclica, que não começou com um simples “era uma vez”, a infância foi perspetivada como um período estruturante. Foi retratada em jogos, lengalengas e brincadeiras de faz de conta, como o concurso de cozinheiros, apresentado pelo pequeno João.


Este foi também um espetáculo sobre memórias de futuro, sobre desejos, projetos e aspirações, como o sonho do João em tornar-se um reconhecido chefe. Recordações, por vezes confusas, que não seguiram uma narrativa linear, como se fossem feitas de fiapos, linhas, retalhos e novelos, que por vezes se harmonizavam, mas que tantas vezes surgiam apenas em fragmentos.


E nesta viagem imersiva no tempo, não faltou, também, uma pequena incursão ao futuro - onde encontramos um avô João conciliado com as suas recordações, cultivando junto aos mais novos, os valores de sempre: a amizade, a partilha e o amor. Um João mais idoso que nos fez compreender que as nossas memórias são como uma árvore, feita de ramificações, alimentada pelas memórias da nossa família, dos amigos e de todos aqueles que nos são próximos.


Nesta(s) narrativa(s), a memória também foi transportada por palavras, imagens, cheiros, sabores, dança e música. Muitas delas vieram presas por notas musicais, que nos trouxeram um casamento improvável (mas feliz), entre Killing in the name de Rage against the Machine e Baile de Verão de José Malhoa, entre tantos outros temas a guardar no baú de recordações deste musical.



Apoios e ficha técnica

Promovido pela Associação de Música e Artes do Dão e pelo CMAD, “A memória das Coisas” foi apoiada pelo Município de Santa Comba Dão e pelo Instituto Português do Desporto e da Juventude.

Com texto de Ana Lázaro, a encenação do espetáculo foi de Rafael Proyas Barreto e a direção musical de Artur Guimarães. A coreografia ficou a cargo de Catarina Alves e a direção vocal de João A. Guimarães. Já o desenho dos figurinos foi assinado por Filipa Carolina e a cenografia por Carlos Neves. Nota ainda para o contributo dos músicos convidados Carlos Borges e Tom Neiva.

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